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quinta-feira, 28 de abril de 2016

A morte atrás da porta


              Júlia acordou sobressaltada. Julgou ter ouvido a porta da sala bater, mas isso não era possível. Estava completamente sozinha naquela casa. Com certeza tinha sido um sonho, ou então era o efeito da heroína causando-lhe delírios auditivos. Sentou-se na cama. A quanto tempo estava confinada naquele quarto? Dias? Meses? Não sabia ao certo. Mas também isso não tinha a menor importância. Na verdade nada mais tinha.  .
                  Sobre o criado-mudo estavam a seringa, a borracha e um frasco vazio de heroína. Eram os três amigos que lhe faziam companhia em seu confinamento auto imposto. O blackout na frente da janela impedia a penetração de qualquer luz externa, mantendo o quarto na penumbra durante o dia e mergulhado numa quase total escuridão  à noite. Esse revezamento entre a pouca e a quase nenhuma iluminação é que fazia com que Júlia distinguisse o período diurno do noturno, mas a verdade é que para ela não fazia a mínima diferença. Ali, entre aquelas quatro paredes, o tempo era algo tão inútil e sem sentido quanto um relógio sem os ponteiros. Levantou-se e acendeu a luz. Abriu o guarda-roupa e contemplou-se no espelho afixado na parte interna da porta. Sua aparência estava horrível. A imagem à sua frente era de uma jovem envelhecida, com manchas escuras embaixo dos olhos e um aspecto cadavérico devido à palidez e magreza extremas. Já havia muitos dias que não colocava nada no estômago. A heroina era o seu único alimento, um alimento que estava destruindo o seu corpo, mas que afrouxava as amarras que prendiam a sua alma. Logo essas amarras iriam partir-se, e então sua alma se libertaria para sempre, assim como aconteceu com seu namorado. A alma dele foi liberta pela heroína e, agora, estava flutuando em outro plano, salva de todo peso e opressão que a vida lhe infligira. Júlia sabia que faltava muito pouco para reencontrar seu namorado. Talvez a próxima injeção na veia fosse a última. Abriu uma das gavetas do guarda-roupa. Em seu interior haviam mais de duas centenas de frascos contendo heroína. Os vazios, espalhados pelo chão do quarto, formavam também uma grande quantidade. Aquele numeroso estoque tinha lhe custado todas as suas economias e alguns itens domésticos. Surpreendeu-se de ainda estar viva depois de ter consumido tanta droga. Era de admirar como seu corpo tinha resistido a tamanha carga, muito embora ele estivesse visivelmente deteriorado.
              Meteu a mão na gaveta e retirou um dos frascos. Foi sentar-se novamente na cama. Enfiou a seringa no recipiente, puxando, com o êmbolo, o líquido amarelado para dentro do tubo graduado. Amarrou bem apertada a borracha em volta de seu bíceps esquerdo. Esse ritual, inúmeras vezes repetido, já lhe era tão automático quanto o ato de respirar. Localizou uma veia em meio aos vários furos existentes em seu braço. Iria mais uma vez entorpercer-se, mergulhar fundo no vazio aquecido e confortável que só a heroína poderia proporcionar. Sentia que aquela seria a última dose, a derradeira viagem. Sua alma, finalmente, iria soltar-se das amarras que a aprisionavam. Seu namorado estava esperando sua chegada. Voltariam a ficar juntos, dessa vez para sempre. Era justo que a morte reunisse o que ela mesma havia separado. Aproximou a agulha do braço. Algo, porém, a deteve. O som de risos, vindo da parte inferior da casa, chegou aos seus ouvidos. Júlia desprendeu a borracha do bíceps e colocou-a, juntamente com a seringa, sobre o criado-mudo. Levantou-se e colou o ouvido na porta. Captou alguma coisa parecida com pessoas conversando. Seria alucinação causada pela droga? Girou a maçaneta e saiu para o corredor escuro em cujo final estava a escada que conduzia à sala de estar. À medida em que se aproximava, os risos e diálogos iam se tornando mais altos. Sentou-se nos primeiros degraus de modo a ficar oculta e poder ver a sala. Não foi sem espanto que percebeu um casal nu, deitado no sofá. A mulher estava de bruços e o homem, sobre ela, penetrava-a por trás. Agora não eram mais risos e diálogos, e sim gemidos. No som gutural emitido pela mulher havia algo de prazer e de dor ao mesmo tempo. Isso, associado com a posição em que se encontravam, deixava evidente que aquele indivíduo estava sodomizando sua parceira. Júlia esforçava-se para entender o porquê daquelas pessoas terem invadido sua casa. Pelo aspecto pareciam moradores de rua. Provavelmente pensaram que se tratava de uma residência abandonada. De fato o lugar parecia mesmo estar abandonado. Era uma construção envelhecida precocemente, assim como sua proprietária. A falta de zelo mais que a ação do tempo tinha contribuido para isso. O mato alto na área da frente, as paredes sujas e descascadas, as janelas e a porta desgastadas e enegrecidas davam uma falsa idéia de que não havia ninguém morando alí.
              Júlia teve o impulso de descer e expulsá-los, porém seu corpo estava debilitado demais para responder a esse comando. Na verdade não era só a falta de força física, mas também a falta de vontade. Por que deveria tomar uma atitude se nada mais fazia sentido? Por que se importar com o fato de terem invadido sua casa se logo estaría morta? Que aquele casal fizesse bom proveito da estadia. Já ía se erguendo para voltar para o quarto quando algo terrível a deteve onde estava. O homem começou a esmurrar sua parceira na cabeça até deixá-la desacordada. Em seguida virou-a, colocando-a deitada de costas. Ele penetrou-a na vagina ao mesmo tempo em que a sufocava com as duas mãos fechadas sobre sua garganta que só parou de apertar depois que atingiu o orgasmo. Júlia sentia-se confusa. Não tinha mais certeza se o que estava presenciando era real ou apenas criação de sua mente alterada pela heroína. Estava mais inclinada para a segunda hipótese, já que tudo aquilo lhe parecia tão distante e surreal como só um delírio podia ser.
               Mas, se aquele casal na sua sala era uma alucinação, então ele ía desaparecer a qualquer momento. Júlia fechou os olhos, acreditando que quando voltasse a abri-los não iría haver mais nada além de um cômodo silencioso com um sofá velho e empoeirado. No entanto, ao levantar as pálpebras, percebeu com um certo desespero que os dois invasores continuavam lá, a mulher prostrada no sofá e o seu conpanheiro por cima dela, estrangulando-a. Ele, logo depois de atingir o clímax, retirou as mãos da garganta de sua parceira cuja laringe encontrava-se, agora, esmagada. Levantou-se e ficou contemplando o corpo sem vida de sua vítima. Sentou-se na beirada do sofá, cabisbaixo. Outra vez o maldito sentimento de culpa a incomodar-lhe como um espinho cravado na carne. Não queria tê-la matado, mas não conseguia evitar. Era mais forte que ele. A sensação que experimentava era magnífica, o prazer percorrendo suas entranhas como uma descarga elétrica e fazendo o seu corpo vibrar. Estava viciado nisso e para satisfazer o seu vício tinha que matar, matar com frequência. O problema era aquele mal estar que vinha depois, aquela culpa que só podia originar-se de algum resto de humanidade que ainda possuía. A pergunta que júlia se fazia, naquele momento, era se devia ou não acreditar no que seus olhos estavam vendo. Fosse como fosse decidiu que já tinha visto o suficiente. Subiu os degraus e voltou para o seu quarto. Ao adentrá-lo apagou a luz, fechando a porta atrás de si com um leve ruído produzido pela lingueta da fechadura, ruído esse que não passou despercebido para o assassino que estava na parte inferior da casa. Ele levantou a cabeça, apurando a audição. Tinha escutado um som parecido com o de uma porta batendo. Parecia ter vindo de cima, mas não tinha certeza. O pensamento de que talvez houvesse mais alguém ali surgiu em sua mente. Olhou para a mulher morta no sofá. Ela havia garantido que aquela casa estava abandonada. Durante alguns segundos manteve os ouvidos atentos, na expectativa de captar mais alguma coisa, porém o silêncio continuou, ininterrupto. Vestiu a calça  e subiu os degraus que conduziam ao primeiro andar. Precisava ter certeza se havia ou não mais alguém naquela casa. Penetrou num pequeno corredor, iluminado fracamente pela luz vacilante de uma lâmpada. Aproximou-se da única porta que havia ali. Com certeza tinha sido ela que ouvira bater minutos antes.
              No quarto, Júlia estava outra vez preparada para se aplicar a última dose de heroína, a que ía fazer o seu, já frágil, coração parar. Estava prestes a injetar a droga quando percebeu alguém aproximando-se pelo corredor. Viu, por baixo da porta, uma sombra parar na entrada do quarto. Era o estrangulador. Real ou não ele tinha vindo atrás dela. Não perdeu mais tempo. Enterrou a seringa no braço, empurrando o líquido para dentro de seu corpo. O homem girou a maçaneta e empurrou a porta. Avistou, de imediato, envolvida pela penumbra, uma silhueta feminina sentada numa cama. Quando pressionou o interruptor que achou na parede, a luz pareceu irromper dolorosamente como se fosse uma aberração naquele cômodo. Uma figura pálida, esquelética e segurando uma seringa vazia tornou-se nítida sob a iluminação do quarto. Com a visão meio ofuscada pela claridade Júlia observou o indivíduo aproximar-se dela. A droga estava começando a fazer efeito. Seu coração acelerou a ponto de parecer que ía explodir. Estava prestes a ter uma parada cardíaca. O assassino caminhou, pisando nos frascos vazios espalhados pelo assoalho, até estacar diante daquele farrapo humano. Júlia levantou o rosto para encarar o homem.
              ___ Você é real ou uma alucinação?___ Perguntou ela, expulsando a voz da garganta.
              ___ O que você acha?___ Replicou o homem. Ele correu os olhos pelo quarto. Julgava que era um quarto porque os móveis ali existentes, embora caindo aos pedaços, sugeriam isso. Mas, na verdade, não passava de um buraco sujo e fétido.
              ___ Se você é real___ disse Júlia.___ então o cadáver que você deixou lá na sala também é.
              O assassino encarou-a como a uma barata que ele estivesse prestes a esmagar.
               ___ Quer que eu te diga uma coisa?___ Disse.___ Hoje não é seu dia de sorte. Você não era pra estar aqui, mas deu o azar de estar.
               ___ Não me diga.___ rebateu Júlia, emitindo um riso logo sufocado por uma contorção facial devido a uma dor que ela não tinha certeza se partia do peito ou do estômago.___ Diga alguma coisa que eu não saiba.
               ___ Não se preocupe, eu posso dar um jeito nisso bem rápido.
              O homem deu um passo à frente e colocou as mãos em volta do pescoço de Júlia. Ela não esboçou nenhuma reação. Apenas fechou os olhos enquanto sentia a pressão esmagando sua laringe. Estava pronta para deixar aquela existência miserável. Finalmente iría reencontrar o seu namorado. O assassino, pelo menos dessa vez, não estava matando por prazer. O seu ato homicida não estava sendo movido por impulsos sádicos, mas pelo instinto de auto preservação. Ela era uma testemunha e tinha visto o seu rosto, por tanto não podia deixa-la viver. Depois de dar cabo dela iria enterrá-la, com a outra, no quintal da casa. O tempo se encarregaria do resto. Aquela, ao contrário das suas outras vítimas que lutaram muito, antes de morrerem, não apresentou nenhum tipo de reação. Parecia, até mesmo, que estava disposta a ser assassinada. Júlia foi compelida a deitar de costas sobre a cama. As duas mãos poderosas, do estrangulador, comprimiam seu pescoço frágil e fino, destruindo a estrutura interna de sua garganta tão facilmente como se fosse um graveto. Ele pôde sentir a vida esvaindo-se do corpo dela como água descendo pelo ralo. Mas, subitamente soltou-a e deu um pulo para trás com uma expressão de pavor. Tinha alguma coisa muito errada. Era algo insano. Tão insano que sua mente não podia compreender. Saiu em disparada pelo corredor. Uma força sinistra tentou puxa-lo de volta para o quarto. Sentiu, de repente, que o seu contato com a realidade estava se desintegrando. Era como se estivesse num terrível pesadelo. Percebeu, com horror, que as paredes começavam a fechar-se sobre ele, o corredor tornou-se mais longo do que realmente era. Correu o mais que pôde, porém alguma coisa o forçava para trás. Era aquela casa. ela estava viva e queria puni-lo por todos os seus crimes, por todas as suas vítimas. Ela queria arrastá-lo para o inferno. Um grito medonho escapou de sua garganta. Com uma força sobre humana conseguiu chegar à escada. Ao descê-la, entretanto, tropeçou e rolou pelos degraus, quebrando o pescoço. Numa fração de segundos antes de morrer, ainda teve tempo de ver a morta levantando-se do sofá.
                                         **************     
              O policial agachou-se e observou o cadáver, depois olhou para o alto da escada. Voltou os olhos, outra vez, para o cadáver. Procurou por algum ferimento profundo, mas não encontrou nenhum. Só conseguiu visualizar escoriações. O defunto estava com as duas pernas sobre o último degrau e o resto do corpo no chão. A posição inclinada da cabeça era um indício de que o pescoço podia estar quebrado. O que perturbava era o seu rosto. Os olhos arregalados, os músculos faciais contraídos e a boca aberta, num grito mudo, uniam-se para compor uma expressão de extremo pavor. Parecia que ele tinha visto ou vivido algo muito aterrorizante. O policial virou-se e olhou, por cima dos ombros, para o seu parceiro que observava a mulher morta no sofá. Consultou o relógio de pulso. 6:30h da manhã. Definitivamente era um péssimo jeito de começar o dia. Ergueu-se e caminhou até seu parceiro.
              ___ E então? Mais alguma coisa?___ perguntou.
              ___ Não. É aquilo mesmo.___ Respondeu o outro. Sua cabeça estava infestada de cabelos brancos, não obstante aparentava ser bem mais jovem que seu companheiro. ___ Ela morreu por estrangulamento. A mancha escura no pescoço deixa claro isso.
               ___ Com certeza houve contato sexual.
               ___ Com o cara lá? ___ indagou o homem de cabelos brancos, indicando com um gesto de cabeça o cadáver no sopé da escada.
                ___ Talvez. Ele deve ter quebrado o pescoço quando caiu na escada. Talvez alguém o tenha empurrado.
                 ___ É, e esse alguém pode ter, também, estrangulado ela. Vamos ver se a perícia vai achar alguma coisa que confirme nossas teorias. Achou alguma coisa lá em cima?
                 ___ Não há nada lá em cima. Só um quarto vazio.
                 Um homem baixinho e rechonchudo invadiu o recinto. Ao avistar os cadáveres, fechou os olhos com uma expressão de repulsa. Os policiais identificaram-se e depois o conduziram para a área da varanda.
                  ___ O senhor é proprietário do imóvel? ___ Perguntou o tira que aparentava ser mais velho.
                   ___ Sou. ___ Disse o homem, balançando levemente a cabeça cujo tamanho parecia ser desproporcionalmente grande em relação ao corpo. ___ Como pode ter acontecido uma coisa dessas?
              ___ Os vizinhos ouviram gritos na casa e então resolveram ligar pra polícia. Quando chegamos aqui encontramos dois corpos. Não achamos nenhum entorpecente, então é provável que eles invadiram seu imóvel apenas pra fazer sexo. O que aconteceu depois é o que queremos descobrir. Estamos aguardando a chegada da perícia pra fazer um exame mais minucioso.
              O proprietário deu um suspiro profundo, depois falou com um ar enigmático:
               ___ Acreditem, vocês nunca vão entender o que aconteceu aí. O que matou          essas duas pessoas não pertence ao nosso mundo.
               Os dois policiais entreolharam-se.
                ___ Como assim "não pertence ao nosso mundo"?___  Indagou o mais velho.
                ___ Há uns 40 anos atrás ___ Disse o proprietário. ___ Uma jovem chamada Júlia morreu de overdose, por heroína, no quarto do andar superior da casa. Desde então a casa passou a ser mal-assombrada. Eu comprei ela há dez anos, sem saber dessa história, na mão de um funcionário público aposentado. Eu aluguei-a várias vezes, mas nenhum dos inquilinos morou nela por muito tempo. Teve uma família, mesmo, que só morou um dia. Todos alegaram a mesmas coisas: visão de vultos, portas fechando e abrindo sozinhas; utensílios domésticos caindo sem causa aparente; móveis arrastados por mãos invisíveis e por aí vai. A maioria disse ter visto a alma da tal Júlia perambulando pelos cômodos da casa. Pessoas entendidas no assunto me disseram que ela não sabe que está morta. Ou, então, que sabe, mas não aceita. Eu, particularmente, nunca vi nada, mas, ainda sim, acredito que haja alguma força sobrenatural habitando aqui.  O fato é que não consegui mais alugar essa casa pra ninguém, nem tampouco vender. Não tive outra escolha senão largar de mão. Agora ela tá aí, entregue ao tempo. E o pior que meu dinheiro também.
              ___ Nós respeitamos seu posicionamento, ___ disse o policial de cabelos         brancos. ___ mas uma coisa eu posso lhe garantir: Essas duas pessoas não foram mortas por nenhuma alma de outro mundo, mas por alguém de carne e osso que vai responder pelo que fez.
            O homem rechonchudo deu de ombros.
               ___ Se você diz...!
            Dois veículos estacionaram em frente à casa. Um tranportava o pessoal da perícia,o outro era o rabecão, para o recolhimento dos cadáveres.
              ___ Finalmente chegaram. ___ Disse o policial mais velho.
              ___ Fiquem à vontade policiais. Se precisarem de mim pra alguma coisa, estarei às ordens.
              O homem percorreu a pequena trilha, ladeada por uma vegetação alta que proliferava ao redor da casa. Os peritos passaram apressadamente por ele em sentido contrário. Cruzou o portão e estacou na calçada, observando a pequena aglomeração de curiosos em frente à sua propriedade. Girou nos calcanhares. Contemplou o imóvel que adquirira Há uma década atrás. De repente um calafrio fez arrepiar todos os pelos de seu corpo. Através da vidraça de uma das janelas enxergou o vulto de uma mulher. Soube imediatamente que se tratava de Júlia, a toxicômana morta há 40 anos.
                ___ Você nunca vai deixar essa casa, não é Júlia? ___ Falou, quase num sussurro e com um meneio de cabeça.
Enviado por: Caio Graco