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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Fim da linha

 HESITEI, CONFESSO. Quem não hesitaria? Quem em semelhante situação não estaria com medo? Quem poderia estar tranquilo e sereno diante de ato tão extremo? Sabia que daquele ponto não havia mais volta, era sabido que ele logo chegaria.

Não pensem que isso foi premeditado, que nessa altura da vida eu teria que recorrer a tão impensada medida, porém os recentes acontecimentos de minha vida me impeliram a agir assim, agir pelo medo, pelo puro desespero. Não aguentava mais — ouso dizer que ninguém aguentaria por tanto tempo — a aquela altura eu havia entregado todos os pontos, eu finalmente desisti.

Lembro-me do tempo em que não precisava me preocupar com meu futuro, meu destino. Gozava de boa saúde, bom emprego e uma família estruturada, tinha a vida que muitos sonhavam, havia encontrado a paz na família e nos negócios, adorava minha vida, até que isso já não era o bastante. Eu queria mais.

Aquela noite eu havia me decidido. Iria ao encontro dele, aquele que me proveria de poder, mais poder do que eu poderia conseguir sozinho em décadas. Havia pesquisado muito, entrado fundo no assunto, me envolvido com pessoas das mais variadas classes sociais e realidades para enfim tomar a decisão. Não esperei nem mesmo o dia seguinte amanhecer.

Caminhei pelo parque segurando firmemente contra meu peito uma bolsa que levava a tiracolo, não havia vento aquela noite, nenhum som, nenhuma vida. Segui pelo caminho usual que todos faziam ao atravessar o parque, meus passos eram um misto de excitação e medo, quando alcancei a centenária figueira, que servia de marco central ao parque, dobrei a esquerda por entre as árvores e segui por um caminho sem trilhas e que recebia apenas uma pequena parte da iluminação dos postes que iluminavam o caminho principal. Lembro-me que quase desisti à aquela altura e se o tivesse feito poderia ter me arrependido no dia seguinte, mas estaria à salvo agora.

Os meus passos faziam barulho, eu pisava em galhos e folhas secas, mas não me importei com isso, eu estava sozinho, não estava? Segui pelo caminho improvisado por mais alguns metros e então parei em uma clareira, olhei em volta nervosamente para me assegurar da minha solidão, vi um vulto correr por entre as árvores e apertei os dentes quase a ponto de quebrá-los. Esperei por algo que não veio, era como se aquele som, aquele movimento nas sombras fosse o meu último aviso, se passasse daquela linha, tudo mudaria. E nem tudo que muda é para melhor.

Ajoelhei-me no chão e despejei todo o conteúdo da sacola entre meus joelhos dobrados, a primeira coisa que caiu foi a cabeça de Lady, minha gata negra que fora a alegria da casa, lembro-me ainda dos olhos tristes de minha menina quando menti que Lady havia sido roubada, quase desisti ali também, mas minha ambição era maior, no sótão foi onde cortei sua cabeça e juntei com os outros “ingredientes” que já havia coletado, falo ingredientes pois o que fiz nada mais foi do que seguir a risca o que tinha estudado e aprendido e como quem prepara um bolo arrumei todo o material como era pedido. Risquei com a faca usada para matar um pombo a estrela de cinco pontas na qual pousei a cabeça de Lady no centro, fiz murmurando o cântico antigo sem errar nenhum verso! Entenda a complexidade desse ato, eu ávido para encontrar o que queria fiz cegamente o que me foi proposto e ao final da receita, esperei. Esperei muito. Porém nada aconteceu.

Lembro-me que voltei para a casa triste, minha amada esposa me esperava e tive de mentir: uma reunião estressante até altas horas foi o meu álibi. Banhei-me e depois do jantar me deitei na cama para dormir, porém o sono não vinha, fiquei de olhos abertos na escuridão me crucificando por ter acreditado em algo tão idiota.

No dia seguinte, logo ao chegar ao escritório recebi uma triste notícia, um colega de trabalho havia morrido na noite passada — infarto eles me disseram — todos no escritório foram ao velório, muitos ali por pura obrigação, pois o falecido não era o tipo de pessoa que podia se chamar de amigável, era invejoso e muito autoritário, por vezes fazíamos piada com seu jeito desengonçado de andar que lembrava um pato, o que me surpreendeu foi o que aconteceu depois. No outro dia fui chamado à sala da diretoria, com a morte do “pato” fui nomeado o mais novo superintendente de finanças da empresa, um cargo almejado por muitos e conseguido por poucos, não me contive de alegria e fui à um pub comemorar com os amigos a promoção ao final do expediente. 
Eu estava radiante, nas semanas seguintes eu sorria e cumprimentava todos no ambiente de trabalho, porém minha promoção causou a inveja de alguns — e eu não os culpo — poucos conseguem conviver com o sucesso alheio e mais pouco ainda são aqueles que passam por isso sem nutrir uma inimizade desnecessária com o promovido, é assim a vida empresarial, uma verdadeira selva de leões. A supervisora de vendas, no entanto, não só ficou descontente com minha promoção como fazia questão de deixar isso bem claro a qualquer um que lhe cedesse alguns minutos para ouvir calúnias sobre mim, mas sempre dava ombros, eu estava no topo. 

Passei por ela aquela manhã e encenei meu melhor sorriso, fiz questão de mostrar minha posição superior, ela riu e certamente me mandou a merda assim que lhe virei as costas, aquela vadia. Sentei-me em minha mesa e coloquei o celular para carregar, porém meu carregador havia desaparecido, deixei o celular sem bateria na gaveta da escrivaninha e me pus a verificar minha caixa de e-mails quando a mesa começou a tremer levemente de forma intermitente, achei estranho e passei meus olhos por toda a extensão da mesa procurando o motivo da vibração. Nada. Olhei por baixo de papeis, abria as gavetas e vi que meu celular estava vibrando. Meu celular sem bateria estava vibrando. Olhei alguns segundos para ele e atendi, o numero não era apresentado em seu visor, mas mesmo assim atendi. Silencio. 

Ela trama contra você. — a voz do outro lado me colocou em alerta, parecia uma mistura de voz rouca com o rugido de um tigre. Ela vai por tudo a perder. — Protestei, exigi uma resposta e me arrependi de ter perguntado quando ela veio: Irei fazer a minha parte, não se preocupe, tome seu café e aproveite a paisagem. Desligou.

Fiquei alguns segundos com o telefone ao ouvido que não produzia mais nenhum ruído, meu coração estava acelerado, olhei para o aparelho e constatei que realmente ele estava sem bateria. Fiquei ali parado por um instante, ponderando aquilo. Sou um dependente convicto de cafeína, bebo litros de café todos os dias e situações como essa me impulsionam a beber ainda mais, corri até a cafeteira, me servi de café e bebi todo o conteúdo da xícara em um só gole, mal senti o gosto da bebida, nervosamente tornei a encher a xícara, respirei fundo e fui até a janela que, do terceiro andar onde estava, conseguia ter uma bela visão do jardim e de todo estacionamento, comecei a relaxar, tentar colocar as coisas no lugar enquanto me acalmava vendo o balançar das árvores com o vento. Foi então que ela surgiu.

Com um andar apressado, apesar do sapato de salto e da saia que moldavam seu estilo social, a supervisora de vendas irrompia em direção de seu espalhafatoso carro amarelo que estava parado fora do estacionamento, do outro lado da rua. Que diabos estava fazendo fora da empresa em pleno expediente? Passou pela portaria e logo ganhou as ruas, eu estava fervendo em raiva com essa afronta, até que algo me paralisou: nem bem tinha colocado os pés na rua e um enorme caminhão frigorífico passou a alta velocidade em frente portaria levando a supervisora com ele. Fiquei paralisado vendo as pessoas se amontoando em volta do corpo caído da jovem quando finalmente o caminhão parou a alguns metros, não demorou e o resgate apareceu, colocaram-na em uma enorme saco preto e a ambulância partiu com as sirenes ligadas.

Achei que meu coração havia parado, minha respiração ficou ofegante e derrubei a xícara que trazia em minha mão, olhei para o celular sobre a mesa e como se ele me encarasse de volta, o visor ganhou cores e ele voltou a tocar. Em um ato de puro desespero, arremessei o celular contra a parede que se despedaçou. Silencio. Não demorou e o maldito aparelho voltou a tocar, caminhei devagar e o tomei em mãos, levei o celular ao ouvido e esperei. Ela não vai mais incomodar. Desliguei e as lágrimas caíram em meu rosto, não havia dúvidas que eu provocara, de forma indireta eu sei, a morte daquela mulher, outro pensamento me ocorreu, o antigo superintendente de finanças era mais jovem que eu e ainda praticante de atividades físicas, com certeza ele não estava na zona de risco, dificilmente seria acometido por uma parada cardíaca, ainda mais fulminante, tremi ao ligar os fatos, alguém está me ajudando. Lembrei-me da noite na clareira e as lagrimas passaram pelos meus lábios agora sorridentes. Tinha conseguido o que queria.

Após esse fato minha vida mudou completamente, minha carreira decolou, ganhei inúmeros concursos, via pessoas que opunham aos seus objetivos serem eliminadas uma a uma, me acostumei com as ligações e já me sentia a vontade para pedir favores que sempre eram cumpridos sem questionamentos, eu mesmo nunca questionava, estavam me ajudando, limpando o caminho para o meu sucesso, fosse Deus ou o Diabo eu não ia interferir, estava me dando bem e não queria parar.

O mundo parecia pequeno demais para mim, até que vi minha ascensão ao topo se tornar uma vertiginosa queda, já era tarde da noite quando o telefone sem bateria tocou. A inveja do seu sucesso está entre sua família. 

Tentei dizer algo, mas a voz tremeu e não saiu. Podem lhe trazer problemas e não queremos isso, queremos? Tentei protestar, mas era tarde de mais, o telefone havia ficado mudo, uma onda de pânico percorreu meu corpo, saltei da cama e apanhei as chaves do carro, dirigi a toda velocidade para o único lugar além de minha casa povoado por pessoas que eu amava, cruzei um sinal vermelho e quase me choquei com uma moto, que ao tentar desviar do meu carro se chocou contra um ônibus que vinha em direção contrária — certamente não havia sido apenas um acidente. Acelerei o máximo que pude e parei diante de minha antiga casa, agora cercada por pessoas que se acotovelavam para ver a casa de meus pais em chamas. Os bombeiros lutavam contra o fogo, porém fui informado que ninguém sobreviveu, uma falha na instalação elétrica foi o que havia sido previamente analisado. 

Entrei no carro sem que ninguém visse e chorei. Chorei como nunca antes, até que o telefone tocou.

Aquela noite eu não atendi ao telefone, ele sempre insistia em tocar, mas nunca mais atendi, estava em choque com tudo aquilo, percebi que estava indo longe demais, estava na hora de colocar um fim naquilo tudo. 

Desci até o sótão, não liguei a luz para não alertar o restante da casa que eu estava ali, passei pela mesa de ferramentas onde matei Lady e me detive um instante pensando do que eu fui capaz, caminhei até o fundo do aposento e próximo da caixa de passagem elétrica, em um velho baú empoeirado, joguei o celular e fechei a pesada tampa, ao me virar ainda podia ouvir o celular me chamando, fechei a porta e imaginei ter deixado o terror atrás dela. Estava enganado.

Dias, semanas se passaram e comecei a ver meu mundo cair, o trabalho era cada vez mais carregado de cobranças, minha mulher parecia cada vez mais distante de mim e até meu garoto de oito anos parecia não se importar com minha presença. Amigos desapareceram, boatos que me desmoralizavam circulavam entre colegas de trabalho, eu estava à beira da loucura e a única coisa que me acalmava era a bebida. 

Comecei a beber desenfreadamente e não demorou até que eu fui seduzido pelo jogo, era dinheiro fácil eu pensei, apenas uma mão de sorte e tudo podia mudar, infelizmente a sorte pareceu me abandonar. Perdi o emprego e minha mulher, minha amada companheira, não mais suportava nossas brigas e resolveu partir, estava reunindo suas coisas quando eu cheguei, com lágrimas nos olhos disse me que não me reconhecia, que não aceitava ficar parada olhando eu me destruir, iria embora e levaria meu filho com ela, explodi em fúria e a agredi, ela caiu e chorou, eu lhe dei as costas e fui ao encontro da única coisa que poderia me tirar desse fosso, desse buraco que insistia em me puxar para baixo. Voltei ao sótão.

Parei diante da porta daquele lugar maldito, fechei os olhos e retomei tudo que me aconteceu durante os últimos meses, de como fui ao céu e desci ao inferno em tão pouco tempo, de como influenciei as pessoas a minha volta, era um passo sem volta o que eu estava prestes a dar, mas não podia mais viver naquele caos, não eu que fui apresentado a um futuro brilhante e glorioso — estaria eu sendo egoísta? Ninguém em meu lugar tomaria atitude diferente! 

Ninguém conseguiria ficar alheio a tamanha oportunidade de vitória, por mais dor que isso pudesse me trazer, toquei a maçaneta e entrei, o ar úmido do sótão encheu meus pulmões, os olhos começavam a se adaptar a escuridão do quarto quando ao fundo pude ver uma das piores cenas de minha vida.

Meu pequeno garoto, esperto e curioso como qualquer criança em sua idade, estava em pé, de costas para mim, com uma das mãos segurava o celular que cintilava contra seu jovial rosto de criança enquanto a outra mão aproximava de forma perigosa uma ferramenta metálica até o quadro de distribuição elétrica. Gritei para que parasse enquanto corria, desci a escada que levava até a parte de baixo pulando os degraus e quase no fim acabei caindo, bati com a cabeça no chão e quando a levantei escutei o estouro. A luz que vinha da casa e entrava no sótão pela porta que deixei aberta vacilou, quando se acendeu novamente e clareou o ambiente pude ver meu pequeno filho caído no chão inconsciente, corri e o tomei nos braços chorando, minha mulher apareceu à porta e me fuzilou com toneladas de ofensas, tomou meu filho dos meus braços e saiu trancando a porta atrás de si, me deixando sozinho na mais profunda escuridão. Até que o celular tocou e tingiu as paredes com sua luz intermitente. Maldito seja! Cerrei os dentes, fechei meu punho com toda força que ele quase sangraram, encarei aquele maldito aparelho que insistia em me chamar, levantei-me e virei as costas para ele. Parei. Não havia pelo que lutar, eu havia perdido, sentei pesadamente no chão e levei o celular até meus ouvidos. Ele riu.

Enviado por Rodolfo Willian

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