segunda-feira, 23 de junho de 2014

Alice no país das trevas

Dizem que a época em que vivi, era a Idade das Trevas. Ou para os cristãos, a Idade da Luz. Independente disso, as pessoas não eram tão tolerantes àqueles que eram "diferentes".
Nunca fui de família nobre, mas era amiga da filha do rei. A princesa Mara tinha uma delicadeza incrível, mas convivendo com ela, percebi que aparência era algo inútil para se julgar.
Mara me conheceu no povoado, quando teve curiosidade em saber como era a vida fora do reino. Eu estava aprendendo a cavalgar, meu pai sempre se decepcionava quando não comandava direito meu cavalo. Não tinha esse dom. Então estava treinando e meu cavalo quase derrubou um dos guardas quase pisando em sua cabeça. A carruagem parou. A princesa irritada, desceu para ver o motivo da demora. Levei um susto e grande tempo para entender seu olhar vazio. Não era nem triste e nem alegre. Apenas não expressava nada, transmitia certo medo. Delicadamentte estendeu a mão pedindo para que eu a acompanhasse até a carruagem. Fui bem tratada, embora a maioria das pessoas me tratassem com indiferença, medo ou desprezo. Aqueles que gostavam de mim, não se aproximavam quando estavam em público e se eu os procurasse, logo se despediam. Era tratada como uma leprosa, embora minha doença não fosse contagiosa. Tinha alguns ataques convulsivos graças à lesão que sofri quando era criança ao andar de cavalo com meu pai, bati a cabeça. A segunda acusação fazia com que minha família nunca permanecesse numa casa durante anos.
No meio de tantos problemas havia uma qualidade: era a jovem mais bonita. Nem Mara tinha tanta beleza. Não era perfeita, mas possuia algo que encantava a primeira vista, até ter algum ataque. E outra coisa que não mencionei, eram as crises de pânico. Coisas que acabavam com qualquer possibilidade de ser bem vista na sociedade.
Levei a princesa para conhecer a vida fora da riqueza em que era acostumada. No começo me sentia tímida, com o tempo viramos melhores amigas e descobri que ela era solitária e se isolava das outras garotas nobres. Não conheci o rei e a rainha, apenas a sua serva favorita, Ana.
Um mês de amizade, no meio da semana, Mara pediu para que me chamasse para comemorarmos, já que faria uma festa na qual eu conheceria seus pais. Coloquei meu melhor espartilho com um vestido preto. Estava sensual demais para meu rosto de menininha. Os guardas reais vieram me buscar.
Me deparei com a princesa vestida como sempre e seu olhar estava diabólico me esperando no jardim do castelo que levava a Floresta dos Horrores, que havia sido apelidada por Ana, quando a garota era pequena. Tinha medo que corresse para lá e se perdesse, achando conveniente assombrar a menina.
Mara estendeu sua mão esquerda para me cumprimentar e senti a espinha esfriar quando vi que estava suja de sangue. Olhei para o seu lado e vi o que havia matado.
Era o coelho de estimação que a princesa parecia tanto ter afeto. A serva sempre dizia que desde pequena, a princesa não largava dele. Sustentava ainda seu olhar diabólico e continuava vazio. Sua voz parecia um demônio reencarnado ou que a tivesse possuído. Deu um sorriso sarcástico e malicioso, dizendo:
- Quer conhecer meus pais, especialmente minha mãe, Alice?
Logo mostrou um relógio sujo de sangue, limpou em sua própria roupa dizendo que eu teria tempo para pagar por minha beleza, que ninguém poderia ser mais bela que ela.
Antes que eu perguntasse qualquer coisa, senti que meu estômago estava prestes a devolver tudo o que havia comido e minha pressão caiu. Por alguns segundos, meu mundo apagou. Quando abri os olhos, um coelho antropomórfico, com dentes afiados, me encarava com seus olhos vermelhos e apenas um ponto preto que dava a sensação de que iria me matar. Tentei me levantar para correr dele, mas ligeiramente o monstro segurou nos meus braços, puxando até a beira de um buraco aparentemente muito fundo. Já não tinha forças para levantar, principalmente para lutar com ele. Estava com a roupa suja de sangue por causa da violência do coelho.
- Espere, senhor Coelho. - gritava de dor, tentando ser mais agradável para não despertar mais ainda a sua ira.
Comecei a tremer e graças a isso se que tive um ataque de convulsão. Quando percebi estava despertando com a cabeça sangrando num lugar completamente bizarro. Mesmo com tonturas, me levantei me segurando na parede. Achei um pote com água e bebi. Tudo ficou estranho, mas contunuei caminhando para achar logo uma saída.
Haviam dois caminhos, um deles era sem saída e outro tinha uma placa escrita: "Corredor Mágico". Mesmo com medo resolvi segui-lo, ficar parada poderia ser pior e aquele bicho poderia me matar.
Peguei uma lanterna que estava no chão, que funcionava ainda. O corredor era escuro, ao iluminar a parede via marcas de sangue e como se alguém tivesse arranhado. Era um cheiro horrível. Caminhando por cinco minutos vi esqueletos e corpos se decompondo. Gritei e deixei cair a lanterna. Comecei a tatear o chão e minha mão se misturou com cabelos. Levei um minuto para achá-la e corri. A batida que levei no joelho me fez parar. Encontrei durante o caminho ofícios de tortura para as bruxas: quebrador de joelho, machados, cadeira de madeira com espetos de metal, arrebentador de cabeça, ecúleo e rodas esmagadoras. O medo cada vez mais tomava conta do meu corpo. Não queria ter uma convulsão novamente e parar em uma daquelas máquinas.
Caminhei por mais dez minutos até chegar numa porta. Quando abri, vi que tinha uma visão interessante, mas... Aterrorizante.
Apesar do que estava vendo, prometi que não iria chorar, que tudo aquilo não acabaria comigo, mesmo aquele lugar querendo me esmagar. Respirei fundo. Estava me sentindo suja, minha roupa manchada de sangue e a dor das minhas feridas não era maior que a minha angústia. Não vou negar que por um momento queria ter morrido de maneira rápida.
Parecia a floresta do castelo da princesa Mara. Enormes árvores cercadas de neblina, o frio me fazia tremer. Comecei a gritar por ajuda. As flores murchas envolveram meus pés com seus espinhos e uma delas disse:
- Sabemos que você não é uma flor, queremos nos alimentar de seu sangue.
Tentei desesperadamente me soltar antes que chegassem no meu pescoço. Parecia um jogo, no qual eu deveria passar pela dor para salvar a minha vida. Consegui me soltar graças a desistência das flores.
Logo começou a chover. A água ia se misturando com o meu sangue e o vestido colando em meu corpo. Fui caminhando, naquele tempo já havia me acostumado com todo aquele horror. Encontrei um cemitério, a única coisa que estava iluminada, colorida, com jeito de alegria e encanto, um lugar que uma criança gostaria de visitar. Parecia ironia. Li nas lápides alguns nomes, entre eles: Lebre Maluca, Sr. Chapeleiro, Filosofia morta (e a foto de um gato estrangulado com uma marca bem pequena chamada Cheshire) e Lagarta Azul.
No meio do cemitério vi um vidro que envolvia uma cabeça ainda conservada, mas sua expressão era assustadora. Estava identificada como Lewis Carrol, o pedófilo. Os olhos do estranho se abriram e ele sorriu com os dentes afiados.
- Que garota bonita, venha...
Saí correndo, quanto menos me machucar, seria melhor obviamente. Os túmulos começaram a se mexer e algo mágico aconteceu.
Me distanciei com alguns passos, alerta para correr. As tampas dos túmulos se abriram e de dentro saíram homens com corpo de valetes. Não eram tão assustadores quanto eu pensava que seriam. Parecia que não percebiam a minha presença. Foram caminhando para fora do cemitério.  Resolvi acompanhá-los mesmo sendo arriscado. Entraram numa espécie de navio, parecendo ser mais avançado. Fui atrás. Era comprido, tinha dois andares, muitos cômodos, porém nenhum tinha quarto, não parecia uma viagem longa. Alguém alertou que o navio iria descer mais um pouco. O primeiro andar começou a encher de água, então subi rapidamente. Uma onda gigante veio em nossa direção, me segurei forte. Alguns caíram em barcos e foram remando para o desconhecido. Ao voltar para o primeiro andar, dei de cara com um monstro vestido de copas. Torturava uma moça, muito parecida comigo. O jeito que me tratou parecia não perceber ou se importar com tal semelhança. Ao tentar voltar vi que a porta de acesso a escada estava fechada.
- Você não vai sair. - disse o estranho com as mãos sujas de sangue.
Fingi concordar em ficar ali, porém saí rapidamente quando vi uma chave na outra porta. Escapei e fui parar num outro local, terra firme. As valetes estavam numa espécie de delegacia. Me olhavam feio. Chegou uma mulher muito bonita, porém seu olhar estava cheio de maldade.
- Quem autorizou você vir?
- Quem é você? - perguntei.
Antes de me responder um soldado a chamou:
- Rainha? Posso decapitar o rapaz que usou tinta vermelha ao invés de sangue para pintar suas flores que roubou da Rainha Branca? Ou estripá-lo?
- As duas coisas. Leve essa garota também. Quero que tirem todo o sangue para o meu banho. Preciso manter minha beleza jovem.
Não tinha como fugir, eram muitos homens. Me colocaram sentada numa cadeira feita de metais pontiagudos. Sabia que não aguentaria quinze minutos.
 Tudo foi apenas um pesadelo. Acordei numa maca, depois de alguns sedativos. Levei um susto quando olhei para o meu reflexo no espelho. Meu rosto estava todo desfigurado. Havia caído em cima de um espelho da princesa que, logo foi considerada como a mais bela do reino. Conheci algumas meninas que conviveram com a Mara. Todas já foram consideradas as mais lindas, porém a Rainha obrigou aos pais de cada uma, quando era crianças, a tomarem uma poção que danificava o cérebro ou algum órgão muito importante, dizendo que era um remédio para que ficassem fortes e servirem a futura princesa. Já que não podia matá-las e despertar a ira do povo, faria com que chegassem ao ápice da loucura quando fizessem amizade com sua filha. Como Mara me fez delirar tanto naquele dia, eu não sei. A única coisa que sei é que nesse sanatório somos abusadas e tratadas como bichos, com choques e socos.
Agora devo parar de escrever, meus dedos sangram, a Rainha de copas e o coelho assassino não param de me olhar. Acho que serei decapitada.

Alice então se perdeu novamente em seu mundo, até ficar velha e morrer.


Enviado por: Jessica Bittencourt

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