quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Do Outro Lado do Corredor

O filme, uma comédia de segunda categoria com atores de quinta, estava na metade quando Augusto levantou-se do sofá para pegar mais uma cerveja na geladeira. Teve a decência de perguntar a Amaral, o dono da casa, se ele iria querer uma também. Só não fez a mesma pergunta para Peixoto, que cochilava no sofá com os pés sobre a mesinha de centro, repleta de latas de cerveja e refrigerante.

— Pega também uns amendoins no armário.

A cozinha era o local mais organizado da casa. Amaral convidara alguns amigos da faculdade para umas de suas muitas festas de sábado. Em geral envolviam bastante cerveja, conversas idiotas, um jogo de cartas e algumas beldades da faculdade. Infelizmente as meninas bonitas estavam escasseando, provavelmente indo a lugares mais interessantes, e as festas de Amaral começavam a parecer mais com uma combinação entre barbearia e boteco. As poucas meninas que haviam comparecido estavam com seus namorados. Lá pelas 23h, quando a festa deveria estar começando, os convidados começaram a pegar o rumo de suas casas.

Bom, pelo menos ainda havia bastante cerveja na geladeira.


Enquanto procurava o bendito saco de amendoins no armário, ouviu um barulho no corredor do prédio. Uma risadinha de mulher. Como estava perto da porta de serviço, espiou pelo olho mágico. Conseguiu ver as escadas do prédio e a porta do apartamento em frente. Estava parcialmente aberta e lá dentro tudo estava escuro. Ficou olhando por mais alguns segundos, curioso para ver a dona da risada. Teve a impressão de ver algo se mover lá dentro e de ouvir o som de algo sendo arrastado. A porta do vizinho se abriu um pouco e depois se fechou com um baque.


Por um breve momento, teve a impressão de também estar sendo observado.

Pegou as latas que estavam sobre a pia e voltou para a sala.

— Prédio sossegado esse seu — disse entregando a lata para Amaral — Sabe se tem algum apartamento para alugar?

— Acho que uns dois ou três.  O aluguel daqui é meio caro... E ainda tem o condomínio. Se não fosse o Peixoto pra rachar o valor eu ainda estaria na casa dos meus pais... Mas nem é tanto pelo aluguel que eles continuam vazios... Pelo menos eu acho.

O filme estava quase no fim quando terminaram suas cervejas. Amaral arrotou alto o suficiente para perturbar o sono de Peixoto, que resmungou e se mexeu um pouco.

— Não é melhor acordar o coitado e mandá-lo para a cama?

— Eu não sou esposa dele. Ele que durma aí. Contanto que não ronque...

Amaral começou a pular de um canal para o outro. Augusto não estava com a menor vontade de ir para casa. Não tinha cerveja lá. Torceu para que o amigo achasse um filme menos pior que o último.

Dessa vez Amaral foi até a cozinha e voltou com quatro cervejas e um saco de batatas.

— Você falou que não era tanto pelo aluguel... Qual o problema então?

— Uma coisa que o porteiro me contou. Contei a história pro Peixoto... Cara, você precisava ver. Ele ficou uns dois dias dormindo com a luz do quarto dele acesa.

— Sério?

— Acredita nisso? Um futuro matemático...

— E o que foi que ele contou?

Amaral acabou sua cerveja e abriu a outra.

— Uma dona aqui do prédio ficou louca. Matou o marido envenenado. Ela era professora aposentada e o marido era protético... Desses caras que fazem dentaduras. Acharam estranho quando o cara sumiu da firma e ela sempre dava uma desculpa quando procuravam por ele.

Encheu a boca de batatas fritas, ajudando-as a descer com mais um gole de cerveja.

— Os vizinhos achavam que ele estava em casa porque ouviam a tal dona rindo e conversando. Parece que ele nunca foi de falar muito, então ninguém estranhava ouvir só a voz dela. Que combinação... tagarela e assassina...

— ... E maluca.

— Escuta só o final. Começaram a sentir um fedor pelo prédio todo coisa de um mês depois dele sumir. Até que um vizinho do prédio que ficava de frente pra eles chamou a polícia. O cadáver do cara estava na cama deles e o coitado viu o defunto pela janela. Quando a polícia bateu na porta dela, ela tomou o mesmo veneno que tinha dado para o marido.

Augusto assobiou admirado.

— Que coisa bizarra... Mas não parece o suficiente pra tirar o sono de alguém... Não sabia que o Peixoto era tão frouxo assim. Tem muito tempo isso?

— Uns cinco anos. Abafaram muito do caso. Eles eram um casal normal e querido até ela surtar. Mas os moradores dos prédios vizinhos sabem da história toda... E toda vez que alguém vem para ver um apartamento, acabam soltando alguma coisa.

— Bom, se for só por isso... — Augusto tomou um gole da sua cerveja, amassando a lata. Abriu a próxima, mas ficou só segurando a lata, sem beber. Sentira a cabeça girar um pouco. Era melhor evitar exagerar ou corria o risco de errar o caminho para casa. — E em qual apartamento foi isso?

— O daí da frente. Nosso vizinho. Até hoje não conseguiram alugar... O Joel, o porteiro, disse que o cheiro do coroa ficou impregnado lá dentro. E também falou que toda semana alguém reclama de barulhos lá. Coisas raspando no chão, pancadas na parede, coisas sendo arrastadas... Teve uma que interfonou pra portaria no meio da noite reclamando de risadas lá dentro. Claro que ele nem se coçou. Sabe como são as pessoas... Adoram acreditar nas coisas que imaginam. Eu acho que tudo não passa de ratos e pessoas que se impressionam a toa... O lugar está vazio desde antes de nos mudarmos.

Augusto ficou segurando a cerveja e sentindo os dedos adormecidos. Não era pelo frio da lata. Era puro e simples medo.

— Quer mais uma cerveja? — perguntou Amaral.

Augusto queria. Decidiu beber o máximo que pudesse e esperar o dia raiar para voltar para casa. Não queria correr o risco de que a porta abrisse no momento em que ele estivesse esperando o elevador.


Nem queria imaginar o que poderia estar dentro daquele apartamento, logo ali, do outro lado do corredor.


Enviado por: Hedjan C.S. do blog material de pesadelos