domingo, 11 de novembro de 2012

Canção de ninar

"Pelo vidro do carro olhei pela primeira vez o prédio cinza. Parecia bem mais morto do que meus pais haviam dito. Por que mudamos para esse condomínio mesmo? É, papai perdeu o emprego outra vez, e nós perdemos nossa bela casa, confortável e toda pintada de azul bem clarinho no bairro mais bonito da cidade. É a economia que está ruim, me dizem eles. Mamãe é uma pessoa muito boa. Trabalha muito todos os dias cuidando de mim e de papai. À noite, quando toda a cidade está em silêncio, ouço minha mãe cozinhando e limpando a casa enquanto sussurra uma linda canção de ninar. Eu nunca achei estranho que minha mãe não dormisse. Eu achava que era assim que as mães eram… Mais que humanas. Ela nem mesmo reclamou quando meu pai chegou em casa e disse que tinha perdido o emprego e precisávamos nos mudar. Ela aceitou sem nem mesmo uma lágrima, perder tudo aquilo que ela cuidou durante anos com tanto carinho. O céu estava cinza, combinando com o prédio e com o meu humor. Olhei para o prédio mais uma vez, e suspirei antes de entrar.  - Camila, traga suas caixas para o apartamento, grita meu pai. -Já vou! Nossa às vezes os pais conseguem ser irritantes. Minha mãe havia chegado antes, e limpado o apartamento durante a noite, depois do expediente. Ela era incrível, sempre tão trabalhadora. Enquanto meus pais arrumavam nosso novo lar, decidi dar uma volta pelo condomínio e ver se tinha alguma criança da minha idade para brincar. Estranho, pensei. Parece que não mora mais ninguém aqui. - Oi, eu sou o Pablo. Prazer. Virei a cabeça e vi um menino, pouco mais de dois anos mais velho que eu, me estendendo a mão. - Camila, o prazer é meu. Pablo me explicou que a maioria dos vizinhos não aparecia durante o dia, e ele era a única criança que morava lá. -Mas não se preocupe, os adultos aparecem todos às 9 horas, e passam a noite limpando seus apartamentos e cantarolando uma linda canção de ninar. Apesar de toda a estranheza da situação, me acostumei rapidamente com meu novo apartamento.  Pablo era um bom amigo, e passávamos muito tempo juntos depois que eu voltava da escola.  Perguntei por que ele não ia à escola, e ele me respondeu que pessoas como nós não precisam de escola depois dos 12 anos. Fiquei dias pensando nisso, até que decidi esquecer o que aquilo queria dizer. Pablo às vezes me dizia coisas que me davam arrepios. No mês seguinte, papai desapareceu. Minha mãe disse que ele havia nos abandonado, que a vida responsável era demais para ele. Apesar de toda a doçura com que me olhava, eu vi um relance de mentira quando ela desviou. Meu pai podia ser um pouco desligado e irresponsável, mas ele me amava e não ia ir embora no meio da noite sem me dizer nada. Ele sabia que eu era madura o suficiente para entender se ele fosse. Dali a dois meses seria meu aniversário de 12 anos. Pablo estava eufórico, me dizendo que tinha feito um presente especial só pra mim, assim como todos os nossos vizinhos. Apesar de serem meio excêntricos, me tratavam bem e pareciam gostar de mim. A cada dia que passava, eu sentia mais dificuldades para dormir. Mesmo com a canção de ninar da minha mãe, eu sempre acabava dormindo cada noite menos. Mas isso não parecia me fazer falta. Além disso, me sentia cada dia mais forte e mais inteligente. Será que isso era crescer? Uma noite eu já estava cansada de me deitar sem dormir a noite toda. Faltavam duas semanas para meu aniversário, e a canção de mamãe começou a me irritar, ao invés de me deixar com sono. Resolvi sair do meu quarto de fininho e tentar sair de casa sem minha mãe ver.  Quando passei pela cozinha, ela cantava sua canção de ninar que fazia coro com as vozes dos outros vizinhos, todos cantando ao mesmo tempo, enquanto ela limpava uma poça de sangue enorme no meio da cozinha, que parecia sair do forno onde ela cozinhava… Minha mãe olhou para mim com medo pela primeira vez na minha vida. - Camila, não era para você saber disso antes do seu aniversário. Você não vai entender, até que esteja pronta pra aceitar que somos diferentes. Saí correndo do apartamento em pavor. O que era aquilo que minha mãe estava cozinhando? Pior, o que ela tinha me dado para comer durante todos esses anos? Passei pelo corredor do prédio e vi que as portas de todos os apartamentos estavam abertas, e todos os meus vizinhos limpavam manchas de sangue e cantavam a mesma canção. Assustada, corri com uma velocidade que não achei ser possível. Tudo passava a minha volta como um borrão, até que eu colidi com alguma coisa. Pablo. Pablo me pegou pelo braço e começou a me puxar de volta para casa. Apesar de eu ser forte, não era mais forte do que Pablo, que parecia ser feito de aço. Eu tentei gritar, mas minha voz não saiu. O desespero começou a tomar conta de mim, e eu sabia que, se Pablo me levasse de volta, nunca ia sair viva daquele lugar. Com esse pensamento, desmaiei. Quando acordei, minha mãe me olhava com muita preocupação e amor. Senti-me segura. Nesse momento, descobri que ela me amava e apesar de ser um monstro, não ia me machucar. - Mãe, por quê? – Eu disse com lágrimas nos olhos. – Por que somos assim? - Eu não sei querida. Nós nascemos diferentes das outras pessoas, o que não quer dizer que somos maus. - E o papai? – Perguntei, já sabendo a resposta. - Eu estava com fome, meu amor.  Nós precisamos de carne e sangue humano para sobreviver. Quando cantamos, podemos atraí-los para perto enquanto dormem. Nós tentamos desistir dessa vida, mas isso nos deixa forte, e nos deixa viver por séculos sem envelhecer. Você vai se acostumar com o tempo. 31 de outubro. Hoje é meu aniversário de novo.  Não sei mais quantos anos tenho, nem me preocupo com isso. Essa noite nós todos vamos comemorar. Você já está me ouvindo? É uma linda canção de ninar…"

fonte: minilua

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